domingo, 30 de março de 2008

Por uma leitura política do Evangelho


“Não existe teologia universal e perene,
mas teologias situadas nas contingências...”
Alberto Fierro


O Filho de Deus veio ao mundo para salvar a humanidade.
Incontestável no universo cristão a afirmação acima é aceita e repetida exaustivamente como tantas outras, sem no entanto, passar pelo crivo de uma análise um pouco mais demorada e questionadora. O questionar nesse caso, não assume uma posição de dúvida ou desdém das verdades que ela expressa (o interesse de Deus na salvação do mundo, por exemplo), mas na observação cautelosa e criteriosa de sua linguagem, contexto, símbolos e conceitos utilizados. De que Deus fala? Como se apresenta esse Deus e o que quer exatamente? Por quais meios deseja salvar? Quem é seu filho e como age? Como é esse mundo que deseja salvar e por que necessita de salvação? Que tipo de salvação?

Infelizmente (ou felizmente) as respostas decoradas da catequese ou do discipulado pessoal não respondem aos questionamentos subjacentes que tal afirmação traz consigo. São respostas por demais superficiais e, na maioria das vezes, padronizadas, universais e deslocadas da realidade da vida concreta. São acompanhadas por chavões e clichês que se fazem ouvir pelos quatro ventos e que pouco (ou nada) dizem a respeito do que se pergunta, ou se dizem alguma coisa é incompatível com a fé que se professa. Funcionam na verdade, como uma anti-profissão de fé, ou como entorpecentes que sem prudência alguma são absorvidos diariamente.

Necessário seria – como fizeram conscientemente os autores bíblicos – fazer com que o leitor(a) pensasse em sua realidade. Fornecer subsídios para que ele(a) pudesse ter um referencial acerca de sua situação existencial e política e perceber que estas duas dimensões da vida não se excluem. Finalmente, fazer com que o leitor(a) tivesse em mãos elementos e informações necessárias para propor alternativas, caso sua realidade se apresentasse como inóspita, opressiva, carente de relações justas ou desprovida de paz e de igualdade.



Os Evangelhos, por exemplo, foram escritos basicamente para que as pessoas às quais foram dirigidos pudessem perceber a dura realidade em que viviam, para que despertassem a consciência crítica, encontrassem apoio em sua resistência política ao Império e às classes dominantes, para que tivessem um referencial de sua situação concreta de pobreza, exclusão e principalmente, perspectivas de mudança. Enfim, para que encontrassem fundamento e fôlego para expressar suas angústias e decepções, mas também suas esperanças e alegrias, e anunciar um Cristo que é o Senhor do mundo e não simplesmente um salvador pessoal.

Encontramos nesses escritos, portanto, claras definições de sua intenção subversiva, manifesta na parcialidade dos quem vivem à margem. Assim, os Evangelhos (e demais livros da Bíblia, como os profetas, por exemplo) são revestidos de parcialidade política, pois entram diretamente nos jogos de poder, das opções e de posições políticas bem definidas. Como explicar o temor de Herodes com o iminente nascimento do Messias, ao ponto de ordenar uma verdadeira carnificina, senão pela mediação política? Como compreender o ministério de curas e milagres de Jesus em favor dos pobres, doentes e pecadores – sobretudo no que se refere à situação sócio-política destes –, senão através de seu comportamento histórico, permeado pelo conflito com as classes dominantes e dirigentes do povo: escribas, fariseus, sacerdotes, herodianos, etc.? Como entender sua morte – além daquilo que é proclamado no querigma cristão – senão também como um processo de silenciamento desencadeado por estes conflitos? É impossível negar que o elo entre a mensagem e a missão de Jesus, e consequentemente sua morte, seja também constituído pela questão política (Mc 8,31; 9,31; Lc 13,31-33). Além do que, a transmissão dos textos evangélicos não é feita somente no âmbito da fé, mas através de testemunhos humanamente válidos (FERRARO, 1977). Não queremos dizer com tudo isto que Jesus foi apenas um revolucionário, ou mais um contestador social, mas que sua mensagem e ministério revelam também atitudes e motivações revolucionárias, inclusive de contestação social.

A percepção que se obtém dessa característica marcante dos Evangelhos só foi possível, ao meu ver, a partir da contribuição da leitura política das Escrituras. Também denominada como hermenêutica política, teologia critica, ou teologia política, surgiu na metade da década de 60, num processo de desprendimento da teologia de base humanista e existencialista. Segundo Mournier, esta base exaltava os valores da pessoa e privilegiava “o primado da pessoa humana sobre as necessidades materiais e sobre os mecanismos coletivos” (FIERRO, 1982:18). A teologia de até então, destacava o aspecto transcendente dos indivíduos, isto é, a relação pessoal entre Deus e o crente. O essencial da fé cristã estava na relação entre a pessoa e Deus, e não nas pessoas entre si. Em contraposição à teologia como hermenêutica – que interpretava a historicidade do ser humano e dos textos históricos do cristianismo –, a teologia existencialista se deteve numa filosofia de valores, ou filosofia da intersubjetividade: o mundo humano (histórico) é um mundo de valores. Houve quem rompesse as barreiras do personalismo assumindo a radicalidade do discurso existencial, como o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, ao afirmar que a única experiência da transcendência é ser para os outros; ou como o bispo Robinson, quando disse que a transcendência consiste no ‘tu’ mais próximo. No entanto, de maneira geral, as determinações históricas, sociais e econômicas, bem como questões de classe social ou lugar ocupado no processo de produção ou nas estruturas do poder não fizeram parte da agenda da teologia humanista e existencialista (FIERRO, 1982).

Em contraposição a estas surgem as teologias políticas. Nasceram em um período da história em que a humanidade debatia e experimentava profundas e decisivas transformações na esfera da política, dos direitos civis, do comportamento social, da cultura, etc. Essas teologias – ou esse modo de fazer teologia – não possuem uma única matriz, no entanto têm como alicerce 4 principais fontes: a) O livro Teologia da Esperança, de Jügen Moltmann (1964), que apresenta uma teologia contextualizada aos problemas e desafios particulares e sociais situados na práxis histórica da sociedade do pós-guerra; b) O livro A Cidade Secular, de Harvey Cox (1965), que trata a secularidade moderna sob uma perspectiva política e incorpora as realidades política e civil à teologia, conhecida como a “teologia da mudança social”; c) O discurso do Pr. Richard Schaull na Conferência Mundial do Conselho Ecumênico de Igrejas, em 1966, que aborda a questão da “teologia da revolução”; e d) A obra de Johann B. Metz, Teologia Política (1967), em que investe contra a abordagem privatista e apolítica da teologia existencial, propondo uma eclesiologia de libertação e de crítica social.

Rapidamente a América Latina respondeu – a partir desses dados e de sua própria condição de desigualdade, opressão e exploração – às percepções da teologia política, por meio da Conferência de Medellín (1968) e da Teologia da Libertação. Seus principais e pioneiros expoentes foram Rubem Alves, Gustavo Gutiérrez, e Hugo Assmann, através das obras Da esperança (1969), Teología de la liberación (1971), e Teología desde la praxis de la liberación (1973), respectivamente. Posteriormente, autores como Juan Luis Segundo, Leonardo Boff e Clodovis Boff, Pablo Richard, Jorge Pixley, Jon Sobrino, entre outros, deram continuidade à Teologia da Libertação na América Latina.

Um outro nome – e talvez mais adequado – ao que se propõe, e que se aproxima de sua base conceitual filosófica, seria teologia materialista histórica. Mas existem complicações no uso deste termo: risco de equívocos conceituais, falta de compreensão do método, pouca clareza acerca do conceitual teórico marxista em geral, além de (e em função disso tudo) preconceito e escândalo a tudo (ou quase tudo) a que se refere o pensamento de Marx e ao socialismo. Assim, encontramos com maior freqüência as expressões teologia crítica, ou teologia política para designar uma reflexão teológica que capta, processa e retransmite suas percepções a partir das determinações e condições históricas do ser humano, bem como das estruturas sociais. Mas é importante ressaltar que surgem com base no marxismo heterodoxo da escola de sociologia crítica de Frankfurt.

Consideradas as devidas diferenças entre elas (e não são poucas), pode-se dizer que todas têm em comum o fundamento da “fé como práxis pública, política e transformadora da sociedade” (FIERRO, 1982: 24), para muitos, evidência do impulso causado justamente pelo ideário marxista, a partir da segunda metade do século passado.

Sob esta nova perspectiva, propõe-se uma ressignificação da compreensão da fé cristã. Com isto queremos dizer que continuamos a crer na Bíblia como Palavra relevada, entretanto, todo dado revelado (inclusive a Bíblia), possui sua mediação concreta, portanto histórica. Possui contexto e ambiente específicos, foi concebido sob uma variedade de aspectos sócio-culturais, econômicos, pedagógicos e... políticos! Isto não significa que desconfiamos da Bíblia, nem sequer que diminuímos seu valor mistérico e religioso, mas que julgamos necessário considerar seus condicionamentos históricos para melhor compreendê-la, e para melhor responder às exigências da Aliança, do direito e da justiça, do Evangelho de Cristo para o nosso tempo. Deste modo, desconhecer ou não fazer uso das ciências sociais na leitura da Palavra revelada leva, invariavelmente aos riscos do fundamentalismo ou da idolatria.

Como dito anteriormente, a leitura política não exclui uma leitura espiritual ou devocional dos textos bíblicos, assim como o Cristo da fé não é estranho ao Jesus da história. Antes, porém, é necessário traçar uma linha de compreensão do que seja político e espiritual.

É comum confundirmos política, com política partidária, ou politicagem, por exemplo. A política é, antes de qualquer coisa, uma atividade. E uma atividade que busca meios de organização e convivência – senão tolerante, mas pelo menos tolerável – e do bem comum. Nas palavras de Enrico Chiavacci “bem comum não significa que todos estejam relativamente bem, mas que ninguém seja impedido na busca do próprio bem” (CHIAVACCI, 2001: 39). Cada pessoa, grupo, organização, cidade, Estado, Nação, etc., vai realizar a(s) atividade(s) política(s) de acordo com suas especificidades, pois não existe um ideal de política, mas somente o fundamento do bem comum. Toda e qualquer atividade que não assuma esta premissa distorce o sentido primordial de política. Deste modo, relaciona-se “com o Estado, com o poder, com a representatividade e participação, com as ideologias, com a violência, seja nos sindicatos, no jogo de futebol, na escola ou no divã, na relação afetiva, no tribunal ou na igreja, na sala de jantar ou na reunião partidária” (MAAR, 1985: 8). As igrejas fazem política (interna e externa) quando se expressam e agem contra todo tipo de injustiça social, por exemplo.

Ora, se a finalidade da política é o bem comum, a do Evangelho, em última análise, também o é. E este aspecto, por si só, já é suficiente para uma abordagem política das Escrituras. O desafio é nelas buscar direcionamentos e orientações que auxiliem neste processo, mas que não fiquem restritas a ele, pois conforme Alberto Fierro, nem tudo é política (por exemplo: a fé, a cultura, a linguagem, a ciência, o amor, o perdão, a arte, etc.), mas todas as coisas devem ser politicamente e socialmente mediadas. Ele afirma categoricamente que “a teologia política não é (não deve ser) uma redução simplista e um cômodo esquecimento de realidades e questões que não são imediatamente políticas” (FIERRO, 1982: 54). A Teologia politicamente mediada não tem a pretensão de dar a última palavra sobre qualquer assunto, mas libertar do isolamento existencial e dar autonomia e possibilidade de observarmos outras facetas do mundo e das coisas.

Quanto ao que se refere ao espiritual – ou às realidades espirituais –, a questão é sempre mais obtusa e inflexível do que a confusão e a falta de esclarecimento na questão da política. Na maioria dos casos, quando feitas referências diretas ou indiretas ao espiritual há uma profunda abstração no discurso, desarticulando-o do universo concretamente situado. É o que se percebe, por exemplo, em expressões como a que nos propomos a discutir no início deste texto, ou como estas: “Deus é amor”, “Jesus te ama e eu também” entre tantas outras. Dizer que Deus é amor e que Jesus ama as pessoas sem considerar as implicações que essa relação tem na vida cotidiana, na ética pessoal e comunitária, e sobretudo nas relações interpessoais que ela pressupõe, é falar de um Deus distante, despreocupado com a história e até ausente dela, isto é abstraído, que tem por oposição a uma experiência vivida. Em outras palavras, espiritual no senso comum se refere à parte não material do ser humano, meramente emocional ou racional, incorpóreo. Esta compreensão foi determinante para o distanciamento entre a dimensão política e a religião, e a existência em geral.

Depois disso tudo, resta perguntar em qual situação existencial (espiritual) e política se encontram os homens, mulheres, idosos, jovens e crianças de hoje? Quais desafios e problemas enfrentam e quais certamente virão no futuro? Em que medida os acontecimentos cotidianos afetam nosso ânimo, nossa intimidade e decisões pessoais? E em que medida essas “alterações de espírito” afetam os outros ao nosso redor? Onde pode o ser humano encontrar perspectivas de mudança, e mudança pra melhor? Em que lugares, tempos e circunstâncias se desenvolve sua participação nesta mudança? Já não nos alertava são Tiago (1,22-25) para o cumprimento da palavra em lugar da simples escuta?

Se, após a leitura dos textos bíblicos perguntas semelhantes a estas não brotarem na cabeça do leitor(a) – mesmo a partir de uma leitura devocional – há algo de errado. Ou não se entendeu o que foi lido (e nesse caso uma segunda e até mesmo uma terceira leitura seriam bem-vindas) ou o leitor(a) está voltado (conscientemente ou não) para uma relação unicamente vertical com Deus, na sua forma mais excludente possível, pois não existe neutralidade na leitura da Bíblia, nem em qualquer outro texto. Este leitor(a) esquece-se, portanto, de que faz parte de um mundo muito vasto e complexo, especialmente no que se refere às relações humanas.


Alexandre Gonçalves



PARA APROFUNDAMENTO:

CLERQ, Bertrand J. de. Religion, ideologia y politica. Salamanca, Sigueme, 1971, 142 p.

FERRARO, Benedito. A significação política e teológica da morte de Jesus à luz do Novo Testamento. Petrópolis, Vozes, 1977, 248 p.

FIERRO, Alberto. O evangelho beligerante. São Paulo, Ed. Paulinas, 1982, 420 p.

MAAR, Leo Wolfgang. O que é política. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985, 117 p.

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