quarta-feira, 9 de março de 2011

Cinzas




Tem dias que perco a fé na humanidade. Hoje é um desses dias. E que não venham os crentes chatos de plantão me dizer que devemos é ter fé somente em Deus, do contrário muitos deles não teriam crido nas promessas feitas pelos futuros cônjuges no altar, ou qualquer outra situação em que envolva o empenho da palavra e a colocação do caráter à prova. Imaginem vocês um mundo sem confiança mútua, seria um inferno. Aliás, essa é pra mim uma boa definição de inferno: um mundo pleno de desconfiança, de eterna suspeita e temor de ser enganado. Tão ruim quanto seu oposto: a confiança cega, sem limites em outrem. O fato é que acreditamos sim, nas pessoas. E isso significa que colocamos, em maior ou menos medida, nossa confiança nelas, ou seja, botamos fé nos outros, assim como deles esperamos reciprocidade.

De qualquer forma hoje acordei sem fé nas pessoas, assim como sei que algumas também acordam sem fé em mim. Ponto pacífico, já que vez ou outra eu mesmo desconfio das coisas que penso e faço. Acontece que eu sei que ela, essa intrusa, vai voltar e me convencer a crer novamente, mas por hoje o que fica é a descrença nas atitudes, intenções e discurso dos outros. Portanto, calma. Não se preocupe comigo, porque daqui a pouco voltarei a crer nas pessoas, mas numa boa medida, o suficiente pra não me iludir com a idéia de que será a própria humanidade a única responsável por dar conta de ordenar e transformar o mundo. Acredito que todos temos um pouco de responsabilidade em tornar o mundo menos pior, ou no mínimo suportável, o resto é por conta de Deus e de sua graça.

Por isso mesmo não acredito (assim como Luiz Felipe Pondé* em seu mais novo livro Contra um Mundo Melhor), em gente muito justa, correta, honesta, humilde e ética, porque sei que por de trás delas há seres humanos de verdade: injustos, mentirosos, obscuros, cheios de si, claudicantes. Essa gente adora criticar seus governantes e representantes públicos, especialmente deputados com alguma evidência ou prova de malversação de dinheiro público, outro tipo de gente igualmente justa, correta, honesta, humilde e ética, pelo menos diante das câmeras, como todos nós. Não vou gastar meu tempo hoje falando deles. Quem sabe outro dia, em breve. As críticas, cabíveis e oportunas na maioria das vezes (pobres deputados), são feitas por quem também dá um jeitinho de levar o seu, seja burlando a Receita Federal omitindo ou falsificando dados, não emitindo notas fiscais (ou as emitindo frias), embolsando indevidamente o reembolso de combustível ou de táxi (lembra aquela corrida que deu vinte reais e você pediu um recibo de cinquenta?).

As veementes condenações à morosidade de nossos nobres governantes partem também de pessoas honestas e trabalhadoras, que lutam muito na vida para construir suas casinhas, e que aproveitam a falta de fiscalização pra jogar o entulho da construção no terreno dos vizinhos, quando não às margens de vias públicas, ou na sua calçada, leitor. Desde a respeitável dona de casa, mãe de família e evangélica fervorosa – que joga seu precioso lixo por aí, indiscriminadamente –, até aos promissores garotos ricos e bem educados em colégios particulares – arremessando da janela de seus carros caros latinhas de energético que acabaram de misturar em seu Black Label –, o ser humano demonstra uma faceta cruelmente real sobre si mesmos: quem não é objeto de nosso afeto não é digno de nosso respeito. Não importa quem você seja, nem o que faz, se não é do rol de membros ou da galera mais chegada não tem porque ser considerado. Ou você suja a casa do seu tio do coração, quase pai, com suas porcarias diárias? Também vai aos jogos com sua gangue pra espancar seu irmão, primo ou melhor amigo por serem eles tão somente torcedores do time rival, ou porque decidiram se relacionar com meninos? Essa verdade não é marca de nosso tempo, como eu imaginava há tempos atrás ou como querem muitos por aí que se aventuram a diagnosticar o cotidiano. É constitutiva do ser humano, "homo homini lupus" (se você, crente chato de plantão descobrir que essa expressão está num livro chamado O Leviatã, procure saber do que se trata antes de me amaldiçoar).

Voltando àquela gente justa e ética que passa horas versando sobre a falta de ética dos homens públicos, mas não tem a capacidade de se olhar no espelho por alguns segundos, quero dizer que são os mesmos que não se importam em furar fila, mentir a idade, falsificar a assinatura pra receber benefício de gente que já morreu, roubar livros de bibliotecas públicas, não devolver o DVD na locadora (e vendê-lo mais tarde em um sebo qualquer), roubar o sinal da TV por assinatura do vizinho, a água ou a energia elétrica das fornecedoras, ouvir música em celular de 80 reais sem fone de ouvido, sentar nas poltronas demarcadas para idosos, deficientes físicos e mulheres grávidas nos ônibus e fingir estar dormindo só para não ter que dar lugar à eles, estacionar em vaga de deficiente no shopping alegando que não há tantos deficientes assim dirigindo, ou que a paradinha vai ser rápida, parar em fila dupla para pegar seu esforçado filho na escola ao passo que amaldiçoa o prefeito por não melhorar o trânsito das cidades, ignorar que seus insignificantes papéis de bala entopem os bueiros agravando as inundações em tempos de fortes chuvas. A lista é grande e as coisas que você faz cabem muito bem nela. Cabe perguntar, como fez o roqueiro Dinho Ouro Preto: o que você faz quando ninguém te vê fazendo, ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver?

Essa gente justa e ética, também trabalhadora e contribuinte adora o gostinho do mando e do desmando, especialmente quando seu pequeno poder vem acompanhado de um objeto que o simboliza, como uma arma, uma bata e um estetoscópio, uma assinatura em um documento importante, um uniforme – nem que seja um terno preto barato de segurança de supermercado, prontamente disposto a espancar o negrinho de boné e bermuda que entrou no setor de eletrônicos. E isso nos mostra outra verdade sobre nós mesmos: estamos todos permeados por nossas mesquinharias diárias, acreditando que o universo conspira a nosso favor, enquanto embriagados, urinamos nas ruas da cidades num dia qualquer de carnaval, adiando o quanto podemos a ressaca da quarta-feira de cinzas – ou uma ressaca maior e de proporções duradouras, como por exemplo a chegada de um bastardozinho, fruto das besteiras que cometemos, e herdeiro tão somente da nossa miséria moral. Antes que você me julgue eu não sou contra o carnaval ou festas populares. Afinal, é preciso se desligar do mundo de vez em quando para sobreviver à ele, como fazem os evangélicos e carismáticos, com suas festinhas particulares, digo, retiros espirituais.

Hoje é quarta-feira de cinzas, e eu me dei o direito de desacreditar (ainda que por um tempo) na humanidade, em você, e também e por que não, em mim mesmo? Sábio foi Paulo, o Apóstolo, quando disse: miserável homem que sou! (Romanos 7, 24). Ainda assim, dou graças.


Alexandre Gonçalves