domingo, 30 de março de 2008

Marcos, um evangelho comunitário

Uma das mais controversas e instigantes imagens de Jesus encontramos no Evangelho segundo Marcos. Nele, Jesus parece enigmático e às vezes tem atitudes espantosas. Seus milagres não são explicados e tampouco comentados. Se modo de agir para muitos é desconcertante. Parece querer fazer-nos pensar a respeito de cada palavra e de cada atitude sua. Tal impressão certamente permeou o pensamento de seus discípulos, causando não poucas vezes, dúvidas e desorientação.


No entanto, se não atentarmos para as sutilezas da narrativa de Marcos teremos uma visão demasiadamente cômica e depreciada dos discípulos: sua lentidão em crer (4.41; 6.6), a contínua falta de compreensão (4.13; 7.18; 8.14-21), sua carência no momento em que se cumpre a manifestação do Cristo (9.10). Mas justamente à esses é conferida a responsabilidade de dar continuidade à Boa Notícia do Reino de Deus (3.14; 6.7; 16.7). Como administrar essa tensão? Afinal, as palavras de Jesus, entre elas especialmente as parábolas, eram de fácil ou de difícil assimilação? Foram motivos de separação ou de aproximação a Jesus? Seu ensino o tornou popular ou sectário?

Como tentativa de resposta, agrupamos algumas impressões a respeito deste evangelho, a fim de demonstrar que uma das linhas gerais da sua construção refere-se à primazia do ambiente comunitário. Aliás, sua própria redação é reconhecida por muitos estudiosos como sendo fruto de uma elaboração coletiva, e não obra de uma única pessoa. Esse aspecto é fundamental para a compreensão do todo do evangelho e orienta nossa visão na busca de elementos que possam contribuir para formação de uma consciência comunitária em nossas igrejas.

Desde o início de sua atividade na Galiléia, quando os chama para o seguimento (1.16-29), Jesus está sempre acompanhado pelos discípulos. Jesus não fica só, exceto quando os envia a pregar (6,7-13), e na fuga deles no momento de sua prisão (14.50). Curioso é o fato de que todas as vezes que Jesus fica sozinho Marcos relata estes momentos como carregados de dramaticidade: a tentação no deserto (1.12-13), a morte de João Batista (6.14-29), o Getsêmani (14.32-37), sua prisão e crucificação (14.43-50; 15.22-32). Mesmo quando procura privacidade Jesus é seguido pelos discípulos (1. 35-38).

Por outro lado, a relação de Jesus com a multidão tem dupla dimensão: buscava atingir o maior número de pessoas com sua pregação (1.32-33, 38-39; 2.13), mas nem sempre procurava as multidões, pelo contrário, estas é que o seguiam por onde andava (3. 7, 20). A palavra retirou-se, bem como a ordem dada aos discípulos de manter um barco à postos para uma eventual retirada (como de fato ocorreu), são indícios claros de que Jesus deu preferência a um pequeno grupo de pessoas (3. 13-20; 6.31-32; 9.28; 13.3). Isso não quer dizer que Jesus rejeitou as multidões, antes, elas é que o fizeram quando procuraram apenas os benefícios de seus milagres, desinteressadas portanto, da outra parte da mensagem, aquela que implicaria no compromisso do seguimento, do desenvolvimento de um discipulado, em outras palavras, na inserção em uma comunidade alternativa. Todas estas exigências constavam no ensino de Jesus, o qual Marcos coloca como mais importante que os milagres (1.21-28). Das multidões, Jesus fazia questão do distanciamento estratégico (4.1; 7.33).

Isso não significa que, para Marcos, a mensagem de Jesus fosse restritiva, discriminatória, e que apenas uma dúzia de agraciados pudessem ter acesso à ela, pois entre eles não estavam somente os doze (4.10; 15.40-41). Também os espaços de pregação de Jesus eram públicos ou de fácil acesso a um bom número de pessoas (sinagoga, casas, as entradas das cidades, etc.). Logo, sua missão não é exclusivista. Mas todos os que efetivamente seguiam a Jesus representam a nova comunidade escatológica. Nela consta os doze escolhidos, que assemelham-se às doze tribos de Israel; as mulheres, crianças, pobres e doentes, simbolizando a nova ordem do Reino de Deus, que existe sem discriminação.

Quem participa ativamente de um projeto, seja ele qual for, conhece detalhes de sua constituição, acompanha seu desenvolvimento, avalia suas dificuldades, percebe os avanços, etc. Mas quem está de fora não tem a capacidade de dizer muita coisa a seu respeito. As informações são escassas e imprecisas. A característica mais comum das multidões em relação aos atos de Jesus foi um entusiasmo celebrativo, pois procuravam um evangelho triunfalista. Precisamente desta tentação Jesus fugiu desde o início de sua atividade pública (1.35, 43-44). Já no grupo dos discípulos eram conhecidas as necessidades e dificuldades de seu ministério (1. 38, 45; 2.8; 3.6, 20-22; 6.5,11), pois acompanhavam de perto (e de dentro) o ministério de Jesus.

Outro ponto importante a ser destacado é o fato de que, segundo Marcos, o próprio Jesus considerou seu ensino por parábolas enigmático, ao ponto de referir-se a elas como mistério (4.10-12). Isso não quer dizer que as multidões não entenderam sequer uma palavra dos discursos de Jesus, especialmente as parábolas, mas que seu pleno significado permanecia encoberto. Não vamos estudá-las pormenorizadamente, mas é interessante notar que Jesus parece ter agido de forma proposital, a fim de que as multidões não pudessem discernir seu conteúdo, ao mesmo tempo em que procurava revelá-lo a um grupo reduzido, mas comprometido. Mas os próprios discípulos tiveram muita dificuldade em compreender as parábolas. À primeira vista não há muita diferença entre eles e a multidão. Como resolver este dilema?

Quando Marcos insere a expressão: Ouvi! (4. 3, 24) literalmente significa uma exortação aos seus ouvintes, algo do tipo: “Prestem atenção no que agora eu vou dizer! Isto é muito importante!”. Ela sempre é usada com uma conotação de advertência contra outro tipo de pensamento ou atitude (8.15), com o intuito de despertar para um olhar mais crítico e cuidadoso (12.38) e discernir os sinais dos tempos (13.5). O curioso é que, quase todas as vezes que Jesus pronunciou a expressão “ouvi!”, estava ligada diretamente a um ensino particular. Ainda que as parábolas fossem, de uma maneira geral, inteligíveis a todos, é muito difícil ouvir atentamente uma mensagem e compreendê-la a partir de uma única exposição. É necessário que sejamos estimulados a voltar à ela sempre que possível, captando nuances, detalhes e especificidades outrora despercebidas. Como proceder assim fora do grupo de discípulos? A crítica de Jesus “aos de fora” refere-se àqueles que rejeitaram suas palavras fundamentalmente na negativa destes em constituir comunidade. A radicalidade de Marcos torna claro ainda que estes que rejeitaram não serão perdoados (4.12), ao passo que, mesmo aqueles que pertencem “aos de dentro”, se não renovarem seu compromisso, poderão ter a mesma sorte (8.32-35).

As parábolas não são, portanto, explicadas somente segundo a capacidade intelectual de seus ouvintes, mas também pela disposição e empenho destes em buscar seu significado num ambiente comunitário, segundo a premissa do compromisso com o discipulado e com o seguimento de Jesus.

Esta perspectiva nos liga a outra característica importante do Evangelho segundo Marcos. Nele, Jesus está em constante movimentação, sempre caminhando. Para que houvesse seguimento seria necessário, primeiramente, o desprendimento dos discípulos com seu passado (1.20; 2.14; 8.34) e a disposição de começar algo novo, mas nunca sozinhos (3.14). Essa marca fundamental de Marcos aponta para a compreensão de que sua narrativa subverte alguns valores (já vigentes em sua época) hoje universais: a supervalorização do individual, do privado, em detrimento do coletivo e do comunitário. Os limites de nossa auto-suficiência encontram seu termo na atenção e no cuidado com o outro. Viver nossa liberdade não quer dizer que devemos nos livrar daqueles que nos cercam, uma vez que essa liberdade não pode estar desassociada da responsabilidade.


Conclusão

O segredo solicitado por Jesus àqueles que dele receberam a cura (1.44), e seu ensino particular indicam que seu ministério seria incompreensível em sua inteireza e intenção, não somente fora da fé pascal, mas sobretudo fora do ambiente comunitário. Assim, essa atitude assume um princípio para a fé de todos os cristãos: a sujeição da compreensão comunitária garante uma melhor apreensão da vontade de Deus e consequentemente do seguimento de Jesus. Do contrário, sobram apenas enigmas e palavras desconexas da realidade, da concretude da vida dos discípulos. Marcos quer nos mostrar que, se quisermos nos familiarizar com Jesus, com sua proposta radical de seguimento, entender os motivos reais de sua intervenção nas enfermidades das pessoas, sua ação política libertadora, somente conseguiremos a partir da vivência comunitária. Na experiência do encontro, da troca, da solidariedade, da partilha e da comunhão as palavras de Jesus começam a fazer sentido e orientam a vida do discípulo.

Não queremos idealizar as colocações de Marcos em relação a importância da comunidade, mas uma leitura mais atenta (e comprometida) possibilita-nos observar que a fé era vivida pelos discípulos num ambiente conflituoso e hostil. As informações sobre “os de dentro” e “os de fora” que nos são apresentadas indicam que, não somente havia grupos que discordavam da pregação de Jesus, mas que militavam constantemente contra essa pregação, dentre eles sacerdotes, fariseus e escribas (1.16; 3.6, 22). Diante da contestação e da rejeição, o anúncio do Reino feito por Jesus teria uma única chance de se perpetuar: na resistência coletiva de um grupo que assumiria os riscos de tal empreitada. Não negamos, em nenhum momento, os contratempos e os riscos de se viver em comunidade, e Marcos sempre nos lembra disso quando relata a falta de sintonia entre Jesus e seus discípulos (6.6). De qualquer forma, ainda assim é o melhor jeito, senão o único, de viver a vida cristã.

O maior desafio eclesial nestes tempos (pós) modernos é viver em comunidade. Para não vivermos uma espiritualidade claudicante, devemos nos sentar com Jesus e com a comunidade, de preferência ao redor da mesa, símbolo de comunhão e de partilha. É sintomático que, no Evangelho de Marcos, ao fazer menção de sua missão, Jesus a tenha feito justamente à mesa, com seus discípulos e demais seguidores (2.15-17), e não entre a multidão.


Nenhum comentário: