Falar sobre a graça de Deus e a existência humana é reconhecidamente uma tarefa das mais difíceis. Seria caso para livros inteiros, e ainda assim, algo sempre ficaria por ser dito. Leonardo Boff, em seu livro Graça e experiência humana começa dizendo que “o tratado da graça é um dos mais prejudicados pelas discussões teológicas do passado”, devido à polarizações entre vontade divina e esforço humano.
Sendo assim, este artigo tem apenas a pretensão de discutir a condição humana em relação à graça de Deus, a partir das questões que um outro teólogo, Juan Luis Segundo, coloca para problematizar os conceitos modernos que devem traduzir a terminologia paulina a este respeito.
Compreender a existência cristã e a condição humana a partir da concepção do apóstolo Paulo leva-nos a constatar uma divisão fundamental e uma luta interior nos seres humanos. No entanto, é necessário encontrarmos uma nova terminologia (mais moderna) para designar o “homem interior” e a “lei dos membros” de que fala o apóstolo, já que o pensamento atual pode enriquecer esses conceitos.
Uma das contribuições da filosofia moderna veio através do existencialismo de Sartre, segundo o qual a existência precede a essência. Ou seja, ao ser humano não está determinado, desde seu nascimento, todo o seu caminho, ações e escolhas. É o existir (a vivência diária, com seus conflitos, decisões e circunstâncias de relacionamento e situação) que define a pessoa enquanto tal: “O homem não quer segundo é: é segundo quer”. Para explicar melhor, tomemos a imagem de um leque aberto: em uma extremidade estão inúmeras possibilidades e caminhos que se abrem, que mais tarde nos conduzirão ao nosso caminho, aquilo que definitivamente nos tornamos, em outras palavras, nossa essência.
É importante dizer que, tanto o conceito de existência como de essência sofreram certas distorções e foram alvos de posições extremadas. Ao contrário da definição pela existência, temos também a idéia da definição pela essência: existe uma lei interna que nos dita o poder e o valor (de nós mesmos e das coisas), nos determinando durante nossa existência. O próprio Paulo assinalou o exagero destas duas concepções opostas: não somos completamente livres para escolher e determinar nosso caminho, assim como não estamos completamente determinados, que não temos a capacidade de escolher ou experimentar outras possibilidades.
Partindo do conceito de dualidade (a divisão fundamental em que se encontra o ser humano) a “lei dos membros” de Paulo encontra seu equivalente na “essência” de Sartre, chamada também pela filosofia de natureza. É uma realidade nata, que nos foi imposta, que faz parte de nosso ser, embora não a reconheçamos como autêntico, como nosso. Para que nossos projetos se realizem, precisamos de instrumentos, pois não temos em nós mesmos todas as condições necessárias para realizá-los, nem recursos mentais, corporais ou afetivos, nem estruturas físicas ou sociais. E é justamente a falta de domínio desses instrumentos que pode nos desviar de nossa intenção original, ou até mesmo inviabilizar a execução desses projetos e desejos, razão da crise que nos assola, considerando os “resultados” como algo quase sempre não desejado, não propriamente nosso.
Compreendemos então, que fazemos parte de uma realidade mais complexa. Mas isso tudo não quer dizer que a nossa liberdade não se encontra totalmente ameaçada, diminuída ou até mesmo comprometida permanentemente. Ela é, na verdade, a capacidade que temos de dar sentido e valor aos elementos interiores e exteriores a nós, que se constituem como sistemas independentes de nosso julgamento e comando.
No que se refere propriamente à liberdade, surgem dois novos termos opostos: determinismo e livre arbítrio. Deste modo, é significante ressaltar que a natureza condiciona a existência humana em dois aspectos distintos: possibilidade e limite; e que a liberdade não está imune a estas forças condicionantes.
Portanto, não podemos falar de determinismo, em seu sentido estrito, mas em determinismos, isto é, estes dinamismos naturais, dentro e fora de nós, chamados por Paulo de “lei dos membros”. Assim, a nossa liberdade não é ilusória ou incapaz, tampouco é o esforço racional para desejar e produzir atos livres. A nossa liberdade se fundamenta no terreno da verdade, contra a má fé, ou seja, contra o engano da alienação, do indiferentismo; de assumir como nossos os determinismos internos e externos e nos esquecer e abandonar nosso projeto original: o bem que queremos fazer.
A liberdade se fundamenta na luta por interpretar e separar o que vem de nós e o que falsamente se apresenta como resultado de nosso querer. A tarefa primordial da liberdade é des-alienar o ser humano e devolve-lo à verdade e ao caminho da própria liberdade; é desmascarar todos os verdadeiros motivos da conduta humana. Nesse sentido, a educação mais adequada é a educação para a liberdade: o esforço para captar e compreender a realidade em meio às inúmeras possibilidades e limites que se descortinam, e que constituem a existência humana. É sempre um trabalho, uma construção, possibilidade dada e valor a conseguir, fazendo entrar em ação um número maior de determinismos para equilibrar a situação e impedir que somente um sobressaia. Aquele que só tem um interesse, só uma paixão, é tão escravo quanto aquele que está à mercê de todos os determinismos, sejam internos ou externos.
Atualizando a terminologia de Paulo quanto a isso, podemos descrevê-la como livre-arbítrio: a capacidade e a possibilidade de decidir e escolher livremente – inclusive sobre a própria liberdade. Usando o mesmo termo (liberdade) para as duas realidades, podemos dizer que existe uma liberdade que se possui e uma que se escolhe.
Por fim, há que se esclarecer um outra oposição que surge a partir destas questões: o natural e o sobrenatural. Simplificando: os determinismos que condicionam a existência humana estão no âmbito natural, enquanto que a possibilidade da liberdade e a graça (como dons divinos) pertencem ao sobrenatural.
Em última instância é assim. Mas não podemos deixar de lembrar que existe uma parcela de esforço humano no desafio contínuo de optar pela liberdade, ainda que essa capacidade seja reconhecida também como dom divino, decorrente do conhecimento da graça e da verdade que liberta. Deste modo, o natural e o sobrenatural não se excluem, nem se confundem, mas estão ligados em cada ação humana. Isso explica porque, muitas vezes, mesmo conscientes dos riscos e conseqüências, nos deixamos levar pelas forças circunstanciais (pelos determinismos), alienando-nos e desviando-nos de nossas intenções originais. Por isso a liberdade é sempre movida pelo dom de si – manifestação do nosso eu libertado pela graça redentora –, enquanto que a escravidão é a imposição do egoísmo – manifesto pela via do menor esforço –, da alienação, da não-pessoa. E é justamente esta última manifestação que Paulo denomina como pecado: escravidão.
Eis uma tarefa sine qua non do cristianismo: garantir espaços para a educação para a liberdade, para a manifestação do real dom de si (frutos da ação divina), para a interpretação desalienante do ser e do mundo que o envolve. Do contrário, pode acabar se convertendo também em um obstáculo à própria obra redentora de Cristo. O anuncio do Reino pode se tornar anti-Reino, a mensagem da graça pode se converter em maldição, e o discurso da liberdade pode muito bem mascarar a escravidão que impõe, cada vez mais, suas amarras.
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