domingo, 30 de março de 2008

O Poder da Inclusão

Lendo e Evangelho segundo Marcos, desde o seu início, vamos notar que a dinâmica do poder ocupa um lugar de destaque na narrativa.

João Batista surgiu no deserto anunciando “aquele que é mais poderoso do que eu” (1, 7). Em seu batismo, Jesus foi revestido de poder (1,10-11) e, quando foi impelido para o deserto, se deparou com manifestações e poder e suas tentações (1,12-13). Quando começou o anúncio do Reino de Deus, e chamou trabalhadores comuns para serem “pescadores de homens”1, lhes atribuiu a tarefa de lutar contra o poder dos opressores . A seguir, com o exorcismo (1, 21-28), Jesus desmascara o poder dos líderes religiosos de seu tempo; e com seu ministério de curas exercitou o poder da solidariedade e do serviço (1,29-34).

Logo, podemos dizer que a atividade de Jesus critica e busca transformar uma visão de mundo. Questiona a existência de normas e valores que escravizam e demonstra que o verdadeiro poder é o serviço.

Ainda no primeiro capítulo, este Evangelho nos apresenta uma narrativa que, comumente é denominada como sendo de "milagre"2, mas se observarmos com cuidado, vamos notar que se trata de uma purificação (1, 40-45). Antes, porém, de entrarmos nos detalhes do texto, devemos distinguir antropologicamente os conceitos de doença e enfermidade.

A doença é considerada um mal físico e orgânico, uma disfunção biológica que altera o funcionamento de um ou mais sistemas do corpo, enquanto que a enfermidade é a experiência psicossocial da doença. É a visão que o doente tem de si, do mundo e das relações sociais, alterada pelas conseqüências da baixa auto-estima, da exclusão e da desigualdade, decorrentes da doença. É comum escutarmos por aí que o médico vê a doença, mas o paciente vê a enfermidade.

Certamente isso não se aplica a todos, mas somos herdeiros de uma cultura de classificação das causas e dos sistemas das doenças, que particulariza o problema e perde de vista o todo que envolve também os aspectos da enfermidade.

No mundo antigo, a preocupação com o todo (enfermidade) é a característica das relações, mas a abordagem foi, quase sempre, do ponto de vista negativo. A visão não se limitava ao indivíduo doente, mas estendeu-se a toda comunidade na qual ele estava inserido. Desta forma, o mal individual foi tratado primeiramente pelo isolamento do convívio social, a fim de que o mal não se alastrasse. A exclusão tinha um motivo comunitário: a preservação.

Ao motivo “sanitário” da exclusão, acrescentou-se na sociedade israelita, o motivo moral e religioso: pureza. A exclusão se torna então, a sanção a um pecado cometido. A doença é a expressão visível de um pecado cometido por um indivíduo ou por seus antepassados.


Temos agora melhores condições de ler o texto de Mc 1, 40-45.

De acordo com a prescrição da Lei (Lv 13 e 14) estava esclarecido o mal da lepra (ou doença da pele) era contagioso, devendo ser o doente recluso (literalmente isolado). Antes disso, porém, havia a declaração de impureza, feita pelo sacerdote. Ele era a única pessoa capacitada a examinar o doente e declará-lo limpo, se assim fosse o caso.

Curiosamente o leproso de nosso texto – que deveria estar segregado do convívio social –, se aproxima de Jesus, que não era sacerdote! Este, imediatamente o toca e o declara "limpo"3. Pela lógica e pelas normas de pureza Jesus não poderia ter feito isto, não somente porque não possuía as atribuições sacerdotais, mas porque ao fazê-lo, se tornaria também um impuro. Ambos violaram as normas da religião, da Lei e da cultura vigentes. E ao contrário do que se poderia logicamente supor, Jesus não somente não fica impuro, mas o leproso fica purificado!

O homem leproso talvez tenha se aproximado por não suportar mais a vergonha de sua situação e pela dor da solidão, mas Jesus toma tal atitude movido por um sentimento que também não é muito compreendido neste contexto. E isso reflete um problema de crítica textual. O versículo 41 nos apresenta um Jesus “compadecido”4, mas manuscritos mais antigos deste mesmo texto apontam para uma leitura variante: a expressão “enojado” ou “indignado”, mais no sentido de raiva e cólera5. A tendência histórica da interpretação bíblica encobre o Jesus irado e apresenta como alternativa a suavidade da compaixão. Mas tal suavidade desaparece no versículo 43, em que Jesus faz “veemente advertência6”.

Além do mais, a instrução de Jesus no que se referia à apresentação ritual ao sacerdote, reforça a idéia de que ele não se compadeceu, mas ficou profundamente incomodado com a aquela situação discriminatória pela qual passava o leproso. E não somente isto, mas esse sentimento de Jesus parece supor que o leproso já havia estado com os sacerdotes, mas de alguma forma, seu pedido de purificação foi negado. Justamente porque a apresentação ao sacerdote seria para servir de “testemunho contra eles"7. Se o problema da purificação estava resolvido, por que então a necessidade do testemunho aos sacerdotes?

O tom desta narrativa é conflitivo e não confirmativo. Isto quer dizer que, ao contrário do que muitos comentadores apresentam, Jesus não quis submeter o leproso ao ritual sacerdotal, e sim identificar e rechaçar uma situação de exclusão notória e explícita. Isto explica sua “ira” de Jesus e dissipa a idéia de que ele estivesse com a intenção de “propagandear” sua capacidade de realizar milagres, e através deles, anunciar o poder restaurador de Deus. Não queremos aqui negar a realidade e eficácia deste poder, tampouco da capacidade de Jesus de realizá-lo, mas o texto nos aponta para outro foco.

A ordem de Jesus é para que o purificado seja uma testemunha contra os sacerdotes e a ordem por eles representada, e não apenas um divulgador do acontecimento extraordinário que o milagre lhe proporcionou.

No entanto, nos parece que este homem não entendeu o recado. Ele não compra a briga de Jesus na proposta ousada de testemunho, mas somente divulga o “milagre” em si (1, 45), declarando sua visão distorcida de poder. Isso faz com que Jesus não consiga entrar publicamente nas cidades que visita. Sua retirada para lugares ermos não pode ser atribuída à sua popularidade, mas pelo fato de que, ao tocar num impuro, se tornara também impuro!. Ele agora carrega em seu corpo o estigma do rejeitado, devendo se esconder. Perdeu sua liberdade de locomover-se e de estar em contato direto com as pessoas. Pagou em sua própria carne o preço de lutar pela restauração de uma pessoa. Isso nos adverte de que toda libertação provoca conflito.

Mas este “sacrifício” foi de alguma maneira recompensado, naquilo que podemos atribuir somente à ação graciosa de Deus. Mesmo afastado, Jesus foi procurado por gente de toda a parte (1, 45). Gente que certamente entendeu a mensagem, mesmo com toda a problemática e riscos nela envolvidos. Gente que decidiu também romper com a ideologia sacerdotal e ir ao encontro de um proscrito. Gente que passou a se orientar sob uma nova perspectiva, uma nova visão de mundo, uma nova visão de poder.


Este texto que vimos não trata de cura, mas de purificação, e de suas conseqüências e implicações, sociais, morais e religiosas. A lepra aqui entra mais como causa de discriminação e exclusão social e religiosa do que propriamente uma questão de saúde pública. Certamente havia essa preocupação, mas com o passar do tempo, a questão moral (pecado) se tornou central para a abordagem do problema, agravando ainda mais a condição social do doente.

Como pudemos observar, só o Templo era oficialmente o lugar da purificação e só o sacerdote era a pessoa capacitada a declarar a pureza. Jesus, ao tocar o leproso e declarar a sua purificação em algum lugar da Galiléia, subverteu as regras da pureza e rompeu com o círculo ideológico imposto pelos sacerdotes. Praticamente após toda declaração de purificação, era necessário também apresentar-se no Templo com uma oferta para sacrifício (Lv 14, 4). Criou-se um sistema de clientelismo entre sacerdotes e o povo, pois muitos dos que vendiam os animais para o sacrifício eram familiares dos sacerdotes ou mesmo os próprios. Ou seja, pouco a pouco, a declaração de pureza cultual e o restabelecimento do convivo social foram associados a questões de comércio. A mercantilização da fé é coisa antiga!

Fundamentalmente Jesus quer – seja com as curas ou com as purificações –, lançar a todos, a proposta de um modus vivendi, isto é, um estilo de vida. A formação da identidade dessa comunidade de seguidores tem bases em um modo de comportamento alternativo ao que vive a grande maioria das pessoas. Não são apenas realizadores de obras esporádicas de auxílio ao outro (assistencialismo), mas uma comunidade que tem uma nova atitude diante de suas próprias vidas e da vida dos outros. Jesus propõe uma cultura de apoio e solidariedade concreta, visível, eficaz e constante. O que significa também a denúncia e a luta contra qualquer situação ou sistema que mantém as pessoas em condições de dependência e exploração.

Nesse sentido, Jesus não confere às pessoas simplesmente o “dom de curar”, no sentido místico e extraordinário do pensamento moderno. Mas dom de se importar, dom de se dispor, dom de servir, dom de esvaziar-se em prol do outro, dom de se compadecer com a dor alheia, dom de incluir, dom de esforçar-se na luta em favor da justiça, dom de buscar a realização dos direitos humanos, dom de protestar em casos de desigualdade e sofrimento, dom de fazer com que o excluído se sinta acolhido, amado e aceito, dom de dar afeto e atenção... enfim, dom de dar voz e vez aos anônimos e desamparados do mundo.

Na purificação, o poder do serviço e da acolhida é maior do que o julgamento, e o toque é mais importante do que a sentença.


Alexandre Gonçalves

Notas

1. Metáfora que não se refere à salvação das almas, como foi consagrada, mas é símbolo de censura e denúncia. Foi usada para o julgamento do rico (Am 4,2) e do poderoso (Ez 29,4). Certamente se aproxima mais como um convite para modificar um ordem de poder estabelecida e lutar contra um sistema de privilégios. (voltar)

2. A grande maioria das Bíblias traz como subtítulo desta perícope os seguintes dizeres: “Cura de um leproso”. (voltar)

3. O verbo kataristhepi é a forma imperativa aoristo de katharizo (limpar, purificar). Neste contexto específico, significa “declarar puro” e não “purificar”. Em outras palavras: “que seja ritualmente puro”. (voltar)

4. splankeistheis: comovido até as entranhas, compadecido. (voltar)

5. orgistheis: profundamente irado. (voltar)

6. embrimesamenos: censurar ou advertir duramente. (voltar)

7. eis martirion autois: literalmente “testemunho à eles”, ou contra eles, conforme outros textos em Mc 6,11 e 13, 9. (voltar)

Nenhum comentário: