segunda-feira, 21 de abril de 2008

Aqui está o melhor da raça humana!

Esta frase foi pronunciada por um jornalista na transmissão da abertura das Olimpíadas na Austrália. Na hora, tive um arrepio. Depois, um constrangimento. Envergonhei-me pelo comentarista, pela sua família, pela minha família, pelos brasileiros, pela humanidade que está viva neste setembro de 2000.

Humanidade que tem dificuldades em se reconhecer como é. Cada pessoa é um pacote indivisível de talentos e de limitações combinados em proporções variáveis em função das oportunidades que a vida traz desde a concepção. Jovens, adultos e idosos são mais ou menos talentosos, ou limitados, dependendo dos recursos que o meio ambiente oferece.


Outro dia cheguei com uma amiga cega no quarto de um hotel no qual nunca havíamos entrado. Mal destranquei a porta ela caminhou pelo recinto com segurança, abriu o armário com uma agilidade espantosa. E eu lá, parada, tateando para encontrar o interruptor na parede. Falei, num lapso (e que lapso!): "Espera, está escuro, deixa eu acender a luz" . Minha amiga riu. "Quem precisa de luz aqui é você".

Nada contra as Olimpíadas. Sou contra o "mau uso" das Olimpíadas. Devemos nos contentar com interpretações capengas sobre o que é, dizem, a maior confraternização do planeta? A tecnologia que nos permite acompanhar com boa definição o que acontece na Oceania evolui com tal rapidez que nem encontro mais um bom adjetivo para descrevê-la. Os atletas que nos emocionam se superam dia-a-dia testando de forma disciplinada seus limites. Por que não seguir o mesmo ritmo no que tange às nossas reflexões humanísticas? Mas não, ligamos a televisão e lá está o comentário velho, antigo, não-holístico, não-inclusivo.

Acreditar que na Olimpíada está o melhor da raça humana é acreditar que existe o pior da raça humana. Levando em conta que os atletas aproximam-se do ideal de saúde, beleza, bom preparo físico etc, quero saber quem representa o pior da raça humana. Os que nascem com alguma deficiência mais visível? Uma síndrome genética, como a de Down ou de Williams? Crianças que têm doenças renais crônicas e que se desenvolvem muito lentamente? Ou que foram ostomizadas em decorrência de câncer, bala perdida, acidente de carro, queda de laje? Ou que, pelas mesmas razões, ficaram tetraplégicas ou surdas?

Tenho notado: não é exato dizer que indivíduos nessas condições não entram na concepção do social de nossa sociedade. Entram, mas entram acuados, em um espaço delimitado que lhes cabe por generosidade ou por concessão, formas tão sutis de autoritarismo. É o lugar do aborígene da Austrália, apontado e filmado pelas televisões de mundo como o exótico-bem-vindo-e-agora-amado nas arquibancadas dos jogos em Sidney neste ano de 2000. É o lugar de quem assiste, mas não participa. É o lugar de quem cria, mas não tem o crédito autoral. É o lugar da visita para a qual arrumamos a casa, fazemos um bolo, colocamos roupa nova, mas de quem esperamos educação suficiente para não invadir nossa intimidade. Mas essa intimidade é justamente o social!

O jornalista que citei não agiu por mal. Apenas, nos seus comentários, refletiu uma sociedade pretensiosa e incapaz de perceber a deficiência como questão humana. Por isso, tenhamos um pouco mais de cuidado ao falar sobre gente. Fácil ser ético quando abordamos o igual, o parecido, o homogêneo, o padrão, o desejável. Difícil ser ético diante da diversidade humana, que é, queiramos ou não, a característica mais típica da sapiens espécie. Quero ter de nossos comentaristas o orgulho que tenho de nossos atletas. Olimpíadas existem para agregar e não para segregar condições humanas.


Claudia Werneck, jornalista, escritora e diretora-executiva da Escola de Gente
(Artigo publicado no Jornal do Brasil em setembro de 2000)

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