quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O filme Avatar como vivência religiosa e as implicações para a teologia prática


De Júlio César Adam*


Nas férias de verão, assim como alguns milhões de pessoas no planeta, fui assistir o filme Avatar, do diretor James Cameron. Além da empolgante propaganda na TV, sabia muito pouco sobre o filme. Não imaginava, no entanto, a intensidade de “religião” que encontraria nas quase três horas de filme.

PARTE I:

Não só os avatares do filme deixavam seus corpos humanos para ingressarem no mundo dos na’vis. Todos nós, espectadores, éramos ligados a uma experiência, muito além do que um simples filme. Isto já seria um aspecto suficientemente religioso para se pensar. Ir ao cinema tem algo de ritual – a pipoca, as luzes que se apagam, o silêncio–, algo de simbólico – luz e movimento que nos conectam a histórias, mitos do lado de cá e da lá da tela –, algo de transcendente – vamos além de nós mesmos. Todos estes elementos são em si religiosos. Mas é no que se refere ao conteúdo, à história da Avatar, que aqui quero mais me deter. Começando pelo próprio título “Avatar”[1] termo proveniente do hinduismo, as diversas conexões estabelecidas entre seres imanentes e transcendentes, a Árvore das Almas, a divindade Eywa, localizada no lugar mais central e sagrado do mundo de Pandora.

Compreendo que é também tarefa da teologia e em especial da teologia prática buscar entender estes elementos “religiosos” presentes no filme e que, também ou justamente por isto, arrastaram milhões de pessoas de diferentes culturas e religiões. Estaria o cinema, através de filmes como Avatar, suprindo a sede religiosa do ser humano? Seria o cinema o grande culto dos habitantes da atualidade? O que tem a teologia cristã a ver com tudo isto? O que a teologia prática pode tirar desta “religião nas telas dos cinemas”?

Fenômeno da religião vivida

No limiar do século XXI vivemos um fenômeno religioso. Contra todas as pressuposições, vivemos um retorno e um incremento do religioso[2]. Ou seja, contrário às previsões de que o ser humano da era científica e tecnológica seria a-religioso, emancipado, vivemos um verdadeiro avivamento da religião, tanto da institucional, como da religiosidade que perpassa a cultura[3]. O retorno do religioso na contemporaneidade é um fenômeno complexo, multifacetado. Uma das suas características é a independência da religião de suas respectivas instituições. Vive-se uma transmigração de fronteiras confessionais. Outra característica é a manifestação do religioso na esfera dita “profana”, ou seja, fora da instituição religiosa, fora da igreja instituição, fora da própria esfera religiosa. Mais do que sincretismo, mais que transgressão de fronteiras, se diluem as próprias fronteiras entre sagrado e profano. É dentro desta característica, que esta análise do filme Avatar se enquadra.

Estamos vivenciando a religião que migrou para esfera da cultura popular e para o cotidiano da vida. Onde pois encontramos hoje pistas desta religião? Com certeza não apenas na Igreja. Podemos encontrá-la nas colunas de aconselhamento nas revistas e nas ilustrações dos personagens fictícios dos comic strips, nas páginas de horóscopo, e no vasto mercado dos livros esotéricos. Podemos encontrá-la nas artes plásticas com suas chocantes e questionáveis obras, apontando para nossa imperceptível transcendência cotidiana. Podemos encontrá-la na terapêutica com sua oferta de vivência individual e meditações sincréticas. Podemos encontrá-la em facções políticas, que exigem relações de inclusão social e asseguram identidades pessoais. Podemos encontrá-la no consumo, através das propagandas com promessas religiosas. Podemos encontrá-la na indústria do turismo, no culto em torno à alimentação e aos exercícios físicos, que faz do paraíso uma promessa[4].

Esta religião vivida no cotidiano está, pois, presente na literatura[5], nos heróis das histórias em quadrinhos[6], na moda e em tendências de comportamento[7], na música[8], na mídia[9] e no marketing[10]e, não por último, no cinema[11]. Tudo isto revela aspectos de uma sociedade na complexidade onde as idéias, expressões, necessidades, saberes, culturas se entrelaçam e precisam, para serem acessadas e entendidas, ser olhadas na inter-relação, na re-ligação.[12]


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* Júlio Cézar Adam é doutor em teologia, pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e professor na Faculdades EST, São Leopoldo/RS/Brasil.


[1] Conforme o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, avatar é cada uma das encarnações de um deus, sobretudo de Vixnu; transformação, metamorfose.

[2] ALVES, Ruben. O enigma da religião. 4. ed. Campinas: Papirus, 1988. p. 59-82.

[3] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 205-230; RIBEIRO, Jorge Cláudio. Religiosidade jovem: pesquisa entre universitários. São Paulo: Loyola/Olho d’Água, 2009.p. 75-108.

[4] GRÄB, 1995, p. 47. (tradução do autor)

[5] MAGALHÃES, Antônio. Deus no espelho das palavras. São Paulo: Paulinas, 2000.

[6] . IRWIN, William (Coord.). Super-heróis e a filosofia: verdade, justiça e o caminho socrático. São Paulo: Madras, 2005; REBLIN, Iuri Andréas. “Para o alto e avante!”: mito, religiosidade e necessidade de transcendência na construção dos super-heróis. Protestantismo em Revista, v. 04, n. 02, mai./ago. 2005. Disponível em: http://www3.est.edu.br/nepp/revista/007/07iuri.htm,

Acesso em: 22 dez. 2008.

[7] LIPOVETSKY, Gilles, A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Cia das Letras, 2006. p. 131ss.; GALINDO, D., GUSSO, A. C. Quando o sagrado vira moda. In: MELO, José Marques de; GOBBI, Maria Cristina; ENDO, Ana Claudia Braun (Orgs.). Mídia e religião na sociedade do espetáculo. São Bernardo do Campo: UMESP, 2007. p. 62-78.

[8] CALVANI, Carlos E. Momentos de beleza: teologia e MPB a partir de Tillich. In: Portal de Publicações Científicas, n. 8. Disponível em: http://www. metodista.br/ppc/correlatio/correlatio08/momentos-de-beleza-2013-teologiae- mpb-a-partir-de-tillich Acesso em 21 mar. 2010.

[9] MELO, José Marques de; GOBBI, Maria Cristina; ENDO, Ana Claudia Braun (Orgs.). Mídia e religião na sociedade do espetáculo. São Bernardo do Campo: UMESP, 2007.

[10] BOLTZ, Norbert; BOSSHART, David. Kult marketing: die neuen Götter des Marktes, Düsseldorf: Econ, 1995. BECKS, Hartmut. Der Gottesdienst in der Erlebnisgesellschaft. Waltrop: Spenner, 1999.

[11] HERRMANN, Jörg. Sinnmaschine Kino: Sinndeutungen und Religion im populären Film. Gütersloh: Kaiser, 2000.; KIRSNER, Inge. Film, Fragment, Fraktal: eine kleine Kino-Apokalypse. In: STOLT, Peter; GRÜNBERG, Wolfgang; SUHR, Ulrike (Hrsg.). Kulte, Kulturen, Gottesdienste : öffentliche Inszenierung des Lebens. Göttingen : Vandenhoeck &Ruprecht, 1996. p,50-62.

[12] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, 2006; MORIN, Edgar. A religação dos saberes: desafio do século XXI, 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.


Fonte: Artigo publicado na revista Signos de Vida, número 56, julho de 2010 (publicação do Conselho Latinoamericano de Igrejas)

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