Há dois consensos entre as religiões: o ser humano foi criado por Deus e ele é inerentemente imperfeito. Logo, Deus criou um ser imperfeito. Esta afirmação machuca, porque a religião não pode afirmar que Deus tenha feito algo menos que perfeito. A saída é introduzir o conceito do pecado, que “danificou” a obra perfeita de Deus. Calvino afirmou a corrupção total do ser humano pelo pecado, Aquino afirmava que restou no ser humano, depois da queda, algo de bom. Pelágio dizia que nascemos sem pecado, mas que o convívio social é o que nos corrompe. Armínio acreditava que o ser humano ficou com o livre arbítrio. São posições que tentam explicar o problema. A questão permanece: se somos imperfeitos, por que as religiões pregam a necessidade de uma vida perfeita, santa e santificada ou seja lá o que preguem, como essencial para agradar a Deus? Se somos imperfeitos, por que se acredita e prega que Deus só usa os bons, os certinhos, os ascéticos ou reclusos? Quando estudamos a vida espiritual dos modelos espirituais que as religiões difundem, se percebe, se se lê com um mínimo de espírito crítico, que há um processo de heroicização destes personagens, mostrando como tiveram vidas austeras, como se negaram aos prazeres, como se mortificaram, que tiveram períodos de santidade plena. A história destes “santos” é uma galeria de gente anulada. No entanto, quando se busca com mais cuidado algumas informações sobre estes “heróis da fé”, vamos perceber gente tão imperfeita como todos nós. No terreno bíblico se tem Abraão, pusilânime diante das pressões da esposa Sara; Jacó, o enganador; Moisés, desobediente e inseguro de sua liderança; Davi, adúltero e assassino; Salomão, megalomaníaco; Jonas, desobediente e omisso; Jeremias, lamentador; Pedro, emocionalmente instável e dissimulado; Paulo perseguidor da Igreja e com espinho na carne. No campo extrabíblico tem-se o Lutero com angústias quanto à sua fé, Aquino que chegou a duvidar da ressurreição de Jesus, Madre Tereza de Calcutá que pediu em 1953: "Por favor, reze por mim para que não estrague a obra d'Ele e que Nosso Senhor possa se mostrar ... pois há uma escuridão tão terrível dentro de mim, como se tudo estivesse morto ... tem sido assim mais ou menos desde que dei início à obra."; "tão profunda ânsia por Deus e ... repulsa ... vazio ... sem fé ... sem amor ... sem fervor. Salvar almas não atrai ... o céu não significa nada ... reze por mim para que eu continue sorrindo para Ele apesar de tudo." Em 1959 ela escreveu: "Se não houver Deus, não pode haver alma, se não houver alma então, Jesus, você também não é real." Isto me faz recordar a resposta de Deus a Paulo que insistia em pedir que sua fraqueza fosse tirada (o tal do espinho na carne): “o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo.” (II Co 12:9) Deus, no exercício de sua soberania e poder, não precisa de coisas e pessoas certinhas para fazer sua obra. Isto o afirmou Paulo: “temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós.” (II Co 4:7) e o motivo é básico: se Ele só pode usar o que é santo e perfeito, a glória será dividida com o “parceiro na santidade e perfeição”, o ser humano. Se ele usa o fraco, o débil, o pecador, e o torna instrumento da sua graça, a glória é dEle. Dr. Marcos Inhauser www.inhauser.com.br / marcos@inhauser.com.br http://inhauser.blogspot.com/ / http://pt.netlog.com/inhauser
Todo diálogo inter-religioso traz a exigência de verdadeiros e profundos diálogos interpessoais que, por sua vez, exigem, necessariamente, diálogos intrapessoais. Templos, Mesquitas e Terreiros não dialogam, mas sim os seres humanos que os constroem. Isso significa dizer que o percurso ecumênico ou macroecumênico é um itinerário implicativo para todos os atores envolvidos. Portanto, não é um caminho asséptico e nem isento de riscos. Se é verdade que todo diálogo autêntico reclama a identidade de cada sujeito envolvido é, igualmente, verdade que cada parceiro deverá trazer a disposição de alterar-se positivamente, a partir do contato com o diferente. O encontro com o "outro" (alteridade) provoca o deslocamento ecoico e a superação de enclausuramentos eclesiásticos que impedem as tradições religiosas de abrirem-se às outras leituras de fé e a uma compreensão mais profunda do mistério de Deus, que supera quaisquer falas sobre Ele, pois Deus é sempre maior!
Desse modo, a afirmação positiva do pluralismo religioso e da consequente liberdade de opção no campo da vivência da fé exigem um alargamento progressivo da consciência, um caminho de amadurecimento e de superação de barreiras externas e internas. Afirmar a identidade, condição para todo diálogo verdadeiro, não significa enclausurar-se narcisicamente em si mesmo, como se o outro nada acrescentasse ou alterasse. Não há, nessa perspectiva, maior prejuízo para o diálogo do que a recusa da identidade, e não há maior prejuízo para a identidade do que a recusa do diálogo. No encontro com o outro, cada tradição religiosa é chamada com mais intensidade a colocar-se diante de si mesma, percebendo com mais clareza suas luzes e sombras. O trabalho ecumênico, portanto, exige fôlego de bom caminheiro, disposição para singrar novos mares e abertura a novas e surpreendentes sínteses; exige, pois, uma identidade aberta, capaz de integrar positivamente alteridade e vulnerabilidade, rigidez e flexibilidade. Escreveu, de forma celebérrima, o então cardeal Joseph Ratzinger, atual papa Bento VXI acerca do caminho do diálogo:
"É um processo de abertura, de abrir-se para o diferente, para os outros. Procuremos imaginar a arte que é alguém saber escutar. Não se trata de uma habilidade, como o manuseio de uma máquina, mas sim de um poder ser, em que a pessoa é exigida como um todo. Ouvir significa conhecer e reconhecer o outro, deixá-lo penetrar no espaço do próprio eu (...) Após o ato de ouvir, eu sou outro, meu próprio ser foi enriquecido e aprofundado, por se haver fundido com o ser do outro, e, no outro, com o ser do mundo".
Assim como afirmou o filósofo Heráclito que ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio sendo o mesmo, assim também nenhuma tradição religiosa segue inalterada num processo de encontro e diálogo positivo com outras religiões. Desse modo, católicos, evangélicos, protestantes, candomblecistas, umbandistas, muçulmanos, judeus... todos , irremediavelmente, apresentamo-nos para o diálogo com nossas identidades, mas sem que percebamos que a simples presença e interpelação do diferente altera, surpreende e desbanca nossos absolutismos internos. Nesse caminho, afirmamos a presença desafiante do outro e experimentamos coletivamente a oportunidade sagrada de sermos melhores, mais autênticos, mais plurais e divinamente mais re-ligados.
Para concluir e confessar, posso testemunhar que, hoje, a partir do engajamento na Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR), em que tenho a oportunidade de estabelecer vínculos de amizade e trabalho com a diversidade religiosa do Brasil, começo a desconfiar que não sou nem a mesma pessoa e nem tão pouco o mesmo cristão católico de outrora, graças a Deus!!!
Escrito por padre Gegê, pároco da Paróquia Santa Bernadete, membro do Fórum Dom Helder Câmara e da CCIR
Editado por Ricardo Rubim
Leia mais artigos em www.eutenhofe.org.br